Com a devida vénia, divulgamos um interessantíssimo texto da Comissão para os Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, publicado aqui, o qual, pleno de actualidade, só peca por citar a despropósito o sociólogo do regime:
«Freedom or Offence vs Freedom and Offence
Freedom or offence versus freedom and offence. Toda a discussão destas últimas semanas sobre cartoons publicados, primeiro na Dinamarca e, depois, em vários países da Europa ocidental parte deste equívoco. Que ou há liberdade e não há ofensa. Ou a ofensa não é possível quando se exerce a liberdade.
A liberdade é precisamente a característica ou a capacidade que cada um tem de se autodeterminar livremente. Sem peias. Sem medos. Sem pressões. Sem limitações, que não as da lei e, já agora, nem sequer as do senso comum ou mesmo as do bom senso. A expressão é livre. Mas a liberdade implica a responsabilidade.
É aqui que releva o direito à diferença, o direito à crítica, o direito a afrontar, o direito à indignação e até a indignar.
Daí que não possa, nem deva, ser alguma vez instituído qualquer mecanismo de censura prévia. O que não quer dizer que qualquer exercício de liberdade, mesmo liberdade de expressão, não possa ofender. E que essa ofensa possa ser a posteriori alvo de crítica contundente ou génese de processo de natureza reintegratória, indemnizatória ou punitiva.
A liberdade de expressão e de imprensa, e também a liberdade e a liberdade artística, são valores a preservar. Mas não valores absolutos. Que não se esqueçam os seus limites, designadamente o imposto pelos deveres de respeito pelos Outros e pela sua religião, também direitos legal e constitucionalmente tutelados.
Foi muito pouco avisado ou sensato, para não dizer mesmo profundamente injusto e gravemente ofensivo, dependendo da perspectiva, ter associado, ou associar, as religiões e as suas figuras sagradas à violência ou ao terrorismo.
Esta generalização redutora e nada fidedigna, para além de, injusta está a alargar ou potenciar um conflito cultural, religioso ou, até, civilizacional.
Condenam-se veementemente a violência terrorista e as reacções exacerbadas de alguns sectores islâmicos e eram evitáveis as reacções desbragadas de alguns autistas defensores de uma liberdade sem limites. De uma liberdade sem respeito. De uma liberdade sem responsabilidade. De uma liberdade ofensiva.
Foram, em todo este processo, e por todos, esquecidas ou espezinhadas as virtudes da tolerância, do multiculturalismo, da cooperação e sã vivência entre os homens de boa vontade, independentemente da sua matriz civilizacional ou religiosa.
Quando proclamamos que “todos têm direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por outro meio, sem impedimentos nem discriminações”, não estamos somente a afirmar a liberdade de expressão, tout cours, mas sobretudo, a apelar a um direito constitucionalmente previsto, direito esse que deverá ser, sempre e em última instância, ressalvado e respeitado, independentemente das orientações que cada indivíduo ou grupo poderá conceber. Ao falar de direitos constitucionalmente admissíveis, falamos de uma panóplia de prerrogativas inalienáveis, intransmissíveis, invioláveis, que são inerentes ao indivíduo pelo simples facto de este existir. Contudo, o direito à liberdade de expressão tem várias formas de concretização, ou seja, implica uma liberdade do indivíduo de, através das mais diversas formas, exprimir o seu pensamento. Assim, este poderá ser expresso através de palavras, de gestos, de pensamentos, de ideais, através da arte, como forma de expressão artística, através da escolha livre dos seus ideais políticos, religiosos, desportivos, enfim resume-se à liberdade do indivíduo ser ele próprio na sua plenitude.
No entanto, não será necessário reflectirmos, nas sociedades actuais, e verificar, em concreto, se todos estes valores são respeitados?
Parece que, em pleno século XXI, existirem casos que chocam como “o dos cartoons”, serve de resposta e de mote de reflexão a esta interpelação.
A liberdade de expressão, como aliás todas as liberdades, tem como principal, e talvez único, limite o dever de respeitar as liberdades e direitos dos outros. De entre todas as liberdades, encontra-se também a liberdade de religião, e, neste sentido, ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos, por causa das suas convicções ou práticas religiosas. Mais, as igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado, e são livres na sua organização, e no exercício das suas funções e do culto.
Esta “guerra de religiões” parece não fazer sentido, contextualizado no actual processo de globalização e de multiculturalismo, uma vez que tais fenómenos devem assentar no reconhecimento e, sobretudo, no respeito pelo outro. O actual processo de globalização, impulsionado pelas novas tecnologias de comunicação e de informação, está a interligar o mundo, estruturando a construção de uma sociedade multiétnica e, consequentemente, confrontando diferentes ideologias, culturas e conceitos. O não reconhecimento do outro como ser humano pleno, contemplando os mesmos direitos que os nossos, tem potenciado a xenofobia, o racismo, as guerras étnicas, a segregação e a discriminação, baseadas na raça, na idade, na etnia, nas questões sexuais, resultando tudo isto em elevados graus de violência. O travão para este conflito civilizacional denomina-se tolerância, com o reconhecimento simplificado do Outro, no seu pensamento e nas suas acções.
O multiculturalismo, baseia-se no respeito do ponto de vista do outro, extensível às sua interpretações e atitudes, constituindo-se numa fonte de possibilidades de transformação e de criação cultural, evidenciando-nos um entendimento dinâmico de cultura, a qual deixa de ser um conjunto de características rígidas transmitidas de geração em geração, para passar a ser uma elaboração colectiva, que se reconstrói, a partir de denominadores inter-culturais.
Ora, o respeito pelo Outro, não admite força, violência ou dominação, mas antes compreensão, diálogo, aceitação, reconhecimento, bem como a “negociação” das diversidades e a “interpenetração” das diferenças. Estamos perante a concepção de democracia dialógica, no entendimento de Giddens, a qual significa, o reconhecimento da autenticidade do outro, cujas opiniões e ideias estamos preparados para ouvir e debater, como um processo mútuo. Aprender a conviver significa respeito e abertura para relações com jogos de linguagem que representam uma heterogeneidade muito grande de elementos sociais, políticos e culturais e – porque não? - religiosos. Aprender a conviver diz, portanto, respeito a uma habilidade pessoal de permitir a aproximação, e não o afastamento do Outro, através do interesse, da escuta, do diálogo, da empatia, tendo sempre por base, que o envolvimento com a diferença se tornou um pré requisito da vida democrática na globalização pós moderna. Em suma, falar de multiculturalismo é falar do manejo da diferença nas sociedades modernas.
Este é o nosso momento. Nele temos de encontrar, no meio de tensões, contradições e conflitos, caminhos de afirmação de uma cultura dos direitos humanos que penetre todas as práticas sociais, se deixe penetrar por outras visões do mundo e da Humanidade e seja capaz de favorecer processos de democratização, de articular a afirmação dos direitos fundamentais de cada pessoa e grupo sócio-cultural, com o reconhecimento do direito à diferença e com a tolerância do respeito pela diferença. Assim entendeu Boaventura Souza Santos, ao afirmar que “ temos direito de reivindicar a igualdade sempre que a diferença nos inferioriza, e temos direito de reivindicar a diferença sempre que a igualdade nos descaracteriza”.
Direitos Humanos e multiculturalismo colocam-se no horizonte da afirmação da dignidade humana, num mundo que parece não ter mais esta convicção como referência radical.
“A Dignidade é o amanhã……” É preciso, porém, construí-lo, com Respeito, Paz e Tolerância, hoje.»
autora: Luísa Teixeira - SCDHOA
quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006
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