terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Another brick...

in the wall:
Foi hoje criada a Base de dados de procurações do Ministério da Justiça - Decreto Regulamentar n.º 3/2009. D.R. n.º 23, Série I de 03-02.

A pretexto do combate à corrupção e à evasão fiscal, quase todos os negócios jurídicos particulares são, presentemente, escrutinados e/ou registados. Pusilanimemente, não se opta por uma mudança radical, criando uma sociedade aberta, com «paredes de vidro» e informação acessível a todos... Mantêm-se as aparências e reserva-se a informação para grupos privilegiados, mas alargados.
É um método perigoso. Muito perigoso.

Com o presente Decreto Regulamentar, o XVII Governo Constitucional pretende estabelecer «o reforço dos meios e programas de prevenção e combate à criminalidade organizada, à corrupção e à criminalidade económico -financeira em geral. A constatação de que a corrupção e a criminalidade económico-financeira mina os fundamentos da democracia e vulnerabiliza a capacidade de atracção de investimento nacional e estrangeiro justifica o reforço de meios no combate a este tipo de criminalidade.»

A passagem anterior não é um comentário irónico de minha autoria. Trata-se do primeiro parágrafo do preâmbulo do mencionado diploma.

Convenhamos que o respectivo escopo é admirável. Quem olhar para a destruída paisagem deste feio Portugal, para os mamarrachos que por aí grassam, para os gravíssimos atropelos ao ordenamento do território, não pode deixar de se indignar. E de involuntariamente pensar que o combate à corrupção é uma batalha essencial e uma prioridade desde há muito.

Sucede que, atendendo ao tema que domina a opinião pública neste momento, não conseguimos evitar um sorriso ao pensar no curioso sentido de oportunidade do Governo na escolha da data de promulgação do diploma em questão - 23/1 p.p.

Mas, cerco porquê?

Passam a ser «obrigatoriamente registadas por meios electrónicos junto do Instituto dos Registos e do Notariado, I. P., pela entidade perante a qual foram outorgadas, as procurações irrevogáveis que contenham poderes de transferência da titularidade de imóveis e as demais procurações irrevogáveis cuja obrigatoriedade de registo venha a ser estabelecida por lei.» - art. 2º n. 1.

De notar que estas procurações irrevogáveis (conferindo poderes para a venda de imóveis), estavam já sujeitas ao pagamento de IMT, liquidado no Serviço de Finanças, que assim já estava ao corrente da existência das mesmas...
De notar, também, que estes instrumentos, por excepcionais, sempre estiveram, ao contrário das demais procurações, registados no cartório notarial onde foram outorgados, sendo a sua existência, desde sempre, consultável pelas autoridades e/ou por quaisquer cidadãos. Dir-se-à que é a mesma coisa... Não é. Esse registo limitava-se a este instrumento, não estava centralizado e não recolhia elementos impertinentes.

Ainda a propósito de procurações irrevogáveis, importa não esquecer que, a partir de agora - cfr. n.5 deste mesmo artigo 2º:
«As procurações referidas no n.º 1 apenas produzem efeitos depois de registadas nos termos do presente decreto regulamentar.» num curioso efeito quase constitutivo, em termos de eficácia, do próprio registo.

Pior, muito pior:
No mesmo artigo 2º, lemos, estupefactos, no nº 6, que:
«— Também pode ser promovido o registo por meios electrónicos junto do Instituto dos Registos e do Notariado, I. P., de quaisquer outras procurações celebradas por escrito, independentemente da forma pela qual sejam outorgadas.»
e que, no nº 7 que:
«O pedido de registo referido no número anterior pode ser promovido pelo mandante, pelo mandatário ou pela entidade perante a qual for outorgada a procuração ou reconhecidas as respectivas assinaturas.»

Dir-se-à que se trata de aproveitar a criação da base de dados para introduzir um novo paradigma, através do qual os cidadãos poderiam informar-se acerca da existência de tais instrumentos... seria uma ideia, com muitas desvantagens, mas com vantagens que as poderiam eventualmente compensar.
Na verdade, o artigo 9.º até prevê «Acessos electrónicos com valor de certidão».
Mas desenganemo-nos. É que, nos termos do art. 1º n. 2, « — A base de dados tem por finalidades:
a) Criar meios adicionais para o combate de fenómenos de corrupção associados à utilização de procurações irrevogáveis para transacções imobiliárias;
b) Criar meios adicionais para a verificação dos poderes dos representantes que utilizem procurações em negócios jurídicos
nada mais.

Aliás, só podem ter acesso à base de dados, para além dos funcionários que as gerem - e certamente as respectivas tutelas -:
«a) Os magistrados judiciais e do Ministério Público, no âmbito da prossecução das suas atribuições, os quais se podem fazer substituir por funcionário judicial por si designado;
b) Os órgãos de polícia criminal competentes para a investigação criminal ou para a realização de acções de prevenção, ou aos quais incumba cooperar internacionalmente na prevenção e repressão da criminalidade económica e financeira e corrupção;
c) As demais entidades públicas às quais a lei atribua competências em matéria de prevenção e combate à corrupção e à criminalidade económico-financeira»
e ainda,
«... através da introdução do código de identificação disponibilizado, nos termos do artigo 4.º, (a) entidade que procedeu ao registo e aos sujeitos que constam da procuração

Temos, portanto, um registo em muitos casos discricionário (art. 2º ns. 6 e 7), a que só alguns podem aceder ( art. 8º), mas do qual podem ser disponibilizados acessos electrónicos - às procurações registadas - com valor de certidão, fazendo prova para todos os efeitos legais e perante qualquer autoridade pública ou entidade privada a disponibilização da informação constante da certidão ou da versão em suporte de papel em sítio da Internet (- art. 9º)... Mas isto faz algum sentido?

Como é evidente, não poderiam faltar menções ao «Direito de acesso pelo titular» (art. 10º) e à «Segurança da informação» (art. 11º) e, até, ao «Sigilo profissional» (art. 12º). Quanto mais não seja, há que manter as aparências.

De resto e como bem notou um Colega, ao senhor presidente do Instituto dos Registos e do Notariado, I. P. cabe uma tarefa ciclópica:
«a) Velar* pela legalidade da consulta ou comunicação da informação;»

Certo é que são recolhidos elementos totalmente desnecessários:
Estipula o art. 5º que «São recolhidos para tratamento automatizado os seguintes dados relativos aos mandantes e aos mandatários que sejam pessoas singulares:
a) Nome;
b) Estado civil;
c) Sendo casado, o nome do cônjuge e o regime de bens;
d) Residência habitual ou domicílio profissional;
e) Número de identificação fiscal;
f) Número de identificação civil.»

Só um espírito decididamente controlador pode estabelecer uma tal exigência.
A que propósito deve constar o nome do cônjuge casado no regime da separação de bens?
A que propósito deve constar o número de identificação fiscal do mandatário nas procurações que não sejam aquelas - excepcionais - que conferem poderes para fazer negócio consigo mesmo - cfr. art. 261º Código Civil?
Será que o legislador desconhece o art. 258º do Código Civil? Não, não acreditamos em tanta incompetência. Será, apenas, a ânsia de tudo querer e tudo poder controlar...

Resta, agora, saber para que serve a procuração irrevogável, instrumento desde há muito consagrado no nosso sistema jurídico (e noutros). É que os institutos jurídicos não existem, não devem existir, como expressão da criatividade do legislador. Antes cumprem, ou devem cumprir, uma função, útil, no comércio jurídico.

P.S. -«Velar - verbo transitivo: cobrir com véu, tapar, ocultar, interceptar; reflex.: cobrir-se com véu; encobrir-se, perder o brilho, a sonoridade, acautelar-se (Do latim velare, "cobrir com véu"); verbo transitivo: vigiar; não dormir de noite; assistir a um doente; estar de guardaa; (em sentido figurado: proteger; não desamparar; intr.: estar vigiando; deixar de dormir; interessar-se. (Do Latim vigilare, "estar desperto").»
in Dicionário da Língua Portuguesa, 6ª. Ed., da Porto Editora.

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