terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

O Estado avança...

Em 1992 (numa altura em que ainda me interessava pelo Direito Criminal), o Professor Figueiredo Dias desafiou os alunos do 1º Curso de Mestrado na Universidade Lusíada a reflectirem sobre as medidas de segurança privativas da liberdade, nomeadamente a ratio de um limite máximo (igual ao da pena correspondente ao tipo de crime) para a duração do internamento e os desafios e riscos que se colocam com a libertação de inimputáveis perigosos.

Na altura, a questão parecia interessante, mas essencialmente teórica.
Os abusos do regime anterior no que respeitava às medidas de segurança pareciam águas passadas, e a pedofilia não passava, nessa altura, de um dos vários tipos de crime previtos e punidos no Código Penal, igual a tantos outros.

Discutia-se, ainda, a solução, essencialmente pragmática do n. 3 do art. 92º do Código Penal, que no fundo desdiz o limite máximo previsto - igual ao da pena correspondente ao tipo de crime - no n. 2, estabelecendo que, em certos casos limite, o internamento pode ser prorrogado por sucessivos períodos de 2 anos até cessar o estado de perigosidade (grave, diríamos nós).
Tratando-se da privação da liberdade de alguém, tal matéria é, como é natural, judicialmente decidida.

Para um não jurista, a questão pode parecer uma bizantinisse.
Não é.

Os princípios do Estado de Direito, os fins das penas, a concepção de sociedade e o respeito pela dignidade do ser humano são afectados nos seus alicerces.

Se considerarmos que a Liberdade é um valor existencial e constituinte do ser humano, e de um estado democrático que respeita os direitos individuais (e é constituído por eles), se considerarmos a privação da liberdade ad aeternum (ainda para mais a de alguém sem culpa) inaceitável e imprópria de uma sociedade civilizada, facilmente nos damos conta da delicadeza da questão.
Do ponto de vista filosófico e, eventualmente - livre-nos Deus -, de um ponto de vista prático.

Ora, de acordo com uma notícia do passado dia 7 no Jornal Sol (on line):

"O Parlamento francês aprovou hoje um projecto de lei que propõe que pedófilos e outros criminosos condenados por delitos graves e considerados perigosos sejam enviados para centros especiais de detenção, mesmo depois de cumprirem as respectivas penas.
[...]
A medida, que inicialmente previa apenas a detenção de pedófilos, foi alargada a todos os criminosos condenados por delitos muito graves e considerados perigosos e susceptíveis de reincidir.
Assim, a nova lei será aplicada às pessoas condenadas a um mínimo de 15 anos de prisão por assassínios, violações, actos de barbárie ou torturas perpetradas tanto contra menores como contra adultos e que, mesmo após já terem cumprido a sua pena, ainda sejam considerados perigosos para a sociedade, segundo o Governo francês.

De acordo com a ministra da Justiça francesa, Rachida Dati, um ano antes do fim da respectiva pena, o detido será submetido a um exame realizado por uma «comissão pluridisciplinar», que avaliará a sua «perigosidade e risco de reincidência» e decidirá se o indivíduo deve ser internado num centro especial.

O período de detenção nestes centros «sócio-médico-judiciais» será inicialmente de um ano, prazo que poderá ser prorrogado, caso o criminoso continue a apresentar um risco de reincidência. Esta medida de carácter «excepcional» permitirá, segundo o Governo francês, que «os predadores possam ficar sob o controlo da autoridade judicial enquanto não estiverem curados».

«A reclusão acabará quando a perigosidade do indivíduo permitir outro tipo de acompanhamento», indicou o Governo, afirmando que os detidos receberão tratamento médico nos centros."

Estas comissões pluridisciplinares serão, certamente, administrativas, demonstrando que a desjudicialização da Justiça não acontece só cá.

Grave é admitir-se a prisão - que é o que está em causa - de pessoas, imputáveis, condenadas e de pena cumprida, por crimes não cometidos.

Voltámos, no fundo, na Europa, às penas de prisão perpétua, só que com uma nova roupagem, e fixadas por uma comissão administrativa com poderes de decisão e não de simples acessoria.

Naturalmente, o diploma gerou fortes críticas por parte de advogados, juízes, médicos e defensores dos direitos humanos.

O que terá o Senhor Professor Doutor Figueiredo Dias a dizer acerca disto?

1 comentário:

Anónimo disse...

Caro Dr. Pedro Cruz é caso para dizer “morte aos direitos, liberdades e garantias, longa vida à arbitrariedade administrativa”. Já nada me espanta, ainda não vi um porco a andar de bicicleta, mas deve estar para breve.
Desde 1215 que não se via tamanho abuso do poder executivo; por certo é mais um dos reflexos da histeria colectiva pela “segurança”, a qualquer preço. O que virá a seguir?