segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

A crise na Justiça

Pelo seu interesse, e com a devida vénia, citamos o interessantíssimo postal de Funes el Memorioso, do blogue citado aqui ao lado e que, uma vez mais, subscrevemos inteiramente:

«Da crise da Justiça: I
Erro comum, que ainda há pouco aqui denunciei, o de acreditar que os problemas sociais tem uma só ou principal causa e que todas as dificuldades se resolvem removendo por decreto essa causa.
À espera há uma hora por uma reunião marcada para as três da tarde, dou por mim a pensar naqueles tolinhos que atribuem a generalidade dos acidentes de viação ao excesso de velocidade e propugnam por uma limitação cada vez mais acentuda dos respectivos limites. Sem terem em conta o verdadeiro problema, acredidatam que o mesmo se resolve por via legislativa, estabelecendo os 40 Km/h. como velocidade máxima permitida nas auto-estradas. Acabar-se-iam os acidentes ou, pelo menos, as suas consequências mais agravosas - acreditam.
Evidentemente, não acabavam. Pobrezinhos de espírito, os defensores de tais destrambalhedas soluções legislativas não se apercebem que, nas auto-estradas, a generalidade das pessoas circula a 140 ou 150 à hora (ou mais). Em qualquer caso, independentemente do limite legal. Se o limite legal de velocidade baixar de 120 para 40, as pessoas continuarão a circular a 140 ou 150. A única real diferença estará em que deixarão de violar a lei por uma margem de 20 ou 30 Km/h, para passar a violá-la por uma margem de 100 ou 110 Km/h.
Para além, claro, do prazer que proporciona a quem a aprecia, velocidade excessiva ocorre essencialmente por dois motivos: porque os automóveis têm a capacidade de andar mais depressa do que os limites de velocidade estabelecidos e porque a vida social não se compadece com o respeito pelos limites estabelecidos.
Só se anda depressa, porque as máquinas permitem que se ande depressa. Um legislador honesto que quisesse, de facto, combater o excesso de velocidade, não estabelecia limites aos condutores, estabelecia limites aos fabricantes e impunha os limitadores de velocidade como condição de homologação de veículos.
Deixando, porém, de lado esta manifestação de legislativa hipocrisia, centremo-nos na questão social: tenho uma reunião às três da tarde a trinta quilómetros do Porto. Deverá demorar cerca de uma hora. Às quatro, estarei de regresso e, tendo em conta o tempo normal para percorrer os 30 quilómetros da volta e admitindo uma margem de segurança para alguma coisa que corra mal, marco outra entrevista para as cinco no escritório. Afinal, a reunião das três começa às quatro e, às cinco, quando já devia estar no Porto, estou a sair dela. Como posso a seguir respeitar os limites de velocidade?
Não posso. E não há nenhuma lei que possa alterar este facto. Combater o excesso de velocidade - se é que isso deve interessar a alguém - é combater as suas causas, o que postula, entre milhares de outras coisas, perceber por que razão não somos pontuais. Tarefa a tender para o inalcançável domínio da infinitude e do caos.
Aceito perder-me em todo este intróito, porque ele ilustra bem o problema da Justiça e da crise que vai por ela.
Volta e meia surgem iluminados a dar conta das causas profundas da crise da Justiça: ora são os juízes que são uns calaceiros e acumulam processos em cima das secretárias; ora são os advogados que a nenhuma manobra dilatória se furtam, para entreter as acções que têm entre mãos; ora é o mapa judicial que está desactualizado; ora é o dinheiro que não se gasta na reforma do sistema; ora...
Nenhuma explicação unilateral terá nunca o poder de explicar nada. Os problemas da Justiça são múltiplos e complexos, tendencialmente infinitos e inalcançáveis.
Vale a pena, apesar de tudo, determo-nos em alguns porque, se o sistema não é, de todo, reformável, pode, ao menos, melhorar substancialmente. Vejamos:
O primeiro problema da Justiça em Portugal são as leis. São muitas e muito más e muito inúteis. Legisla-se demais e legisla-se mal.
A boa Justiça é feita com poucas e boas leis, interpretadas e aplicadas por bons juristas que saibam com razão, bom senso e sentido de equidade subsumir os factos da vida à natureza geral e abstracta das normas.
Desgraçadamente, eliminado, por superlativo e supérfluo, o estudo do direito romano das escolas jurídicas, substituído pelas funcionais burocracias de gabinete, a tendência (europeia, mais do que portuguesa, que se limitou, como sempre, a importar a moda) foi a de querer abarcar na previsão legal os mais ínfimos aspectos da vida, como se toda a realidade, todo o universo de situações juridicamente relevantes, tivesse que estar concretamente contido numa hipótese normativa. Do modo como devem ser fabricados os isqueiros, às indicações que obrigatoriamente devem conter os rótulos das embalagens de milho para pombos, tudo, rigorosamente tudo, passou a ser objecto de uma lei, de uma directiva, de um regulamento.
Do mesmo passo, por simples decorrência lógica, o intérprete e aplicador da lei viu-se funcionalizado e reduzido à condição de mero fiscal da realidade, sem outra função que não a de decretar a natureza irreal ou punível de uma pretensão não exaustivamente descrita numa norma.
Eficácia no manuseamento de bases de dados gigantescas, é tudo o que hoje se pede ao juiz. Não, bom senso, inteligência ou sentido de Justiça.
Mas, apesar de todos os esforços, a realidade (sobretudo nos imaginosos países mediterrânicos do Sul) teima em não caber toda na lei. Por isso, o legislador, aflito, tentando ser maior que o mundo, legisla cada vez mais. Tapa cada lacuna do sistema com uma nova lei; e com uma nova lei tapa a nova lacuna aberta pela lei anterior, destinada a tapar uma lacuna.
O sistema embala. E o legislador legisla... e legisla... e legisla...não à medida dos problemas, mas à medida dos factos e da ordem do dia na comunicação social. Tenta-se deter o mundo por decreto-lei. Como se tentam deter os carros com proibições de excessos de velocidade. Como se a realidade e a velocidade pudessem ser sustidas por ordem do poder legislativo.
Regula-se o segredo de Justiça, não por causa do seu sentido ou função, mas por causa do processo Casa Pia; altera-se o regime de supervisão da actividade bancária, não porque alguém tenha pensado melhor nele, mas porque houve um escândalo no BCP; reformula-se a lei de protecção de menores, não para criar uma melhor, mas porque uns míudos assaltaram numas bombas de gasolina a actriz Lídia Franco, do mundo dos famosos.
Acaba a lei e começa a medida avulsa. Acaba a norma geral e abstracta e começa a decisão individual e concreta, à medida da gritaria e do poder de cada um fazer ouvir própria voz: um ministro suspende e desautoriza em directo na televisão a decisão da comissão que negou a reforma a uma doente; abre-se um inquérito e altera-se um sistema de urgências, porque passa nos telejornais o registo de conversas telefónicos surrealistas entre agentes do 112 e os bombeiros de Alijó...
Tudo é incerto e mera função do noticiário do dia.
Não há trabalhos preparatórios, não há estudos, não há ensaios nem testes às consequências da entrada em vigor de uma lei nova. Há leis-medida, feitas à pressa e a martelo, que o próprio legislador assume no respectivo preâmbulo deverem ser imediatamente revistas, confessando que as criou sem pensar e apenas para acudir a uma moda ou a um caso concreto do momento.
Neste contexto, qualquer esforço de interpretação é inútil. Não há nem pode haver uniformização de critérios aplicativos. Diante de expressões legislativas equívocas, sem lógica, nem coerência, nem gramática, cada um faz o que quer e como quer e quem necessita tem que submeter-se ao poder de facto de quem decide.
Por todo o lado, quando hoje se pergunta como é que se faz este registo, ou se formula este pedido, ou se averigua e requer este direito, a resposta é invariavelmente a mesma: «ai isso, cada um faz de forma diferente; o melhor é perguntar como é que eles fazem lá na Conservatória, na Repartição, ou no Tribunal.»
Acabou a Justiça e passou a valer apneas a selva e a lei do que grita mais alto. Não vamos sair daí, enquanto o legislador não parar de legislar

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